MENDEIROS.A CAMINHO DO ALTAR OU A SAGA DE UM DEDINHO QUE ESTÁ ONDE NÃO DEVIA ESTAR!!!
Meu Caro António Colaço,
Com um grande abraço para o sempre jovem António Trolho,
envio-te mais um texto dos "Episódios...", lembrando o Gavião 1958
Um abraço do tamanho do euromilhões
Mendeiros
NR-Imagens de um outro seminário!O mais próximo do ambiente "jogo".João Lucas, um desenho, já!!!!
Meu Caro António Colaço,cá vamos a caminho do Gavião. O início das inscrições para o “ENCONTRÃO” pareceu-me a altura ideal para mais um escritozito. Assim, na onda do 14 de Maio – Um presente para o nosso passado – láfui, outra vez, ao sótão das memórias repescar saudades do Gavião, para a minha segundacrónica dos “Episódios da vida de um antigo aluno…”.Coisas leves, muito leves, para partilhar em
LEMBRANÇAS. A caminho do altar…
O “enxoval” estava arrumado no malão, recheado de bolas de naftalina para afugentar a traça, e que havia de me acompanhar por dois anos no sótão daquele casarão onde apenas o recreio emparedado me permitia espreitar o outro lado do tempo.Minha mãe iria acompanhar-me na velha “carreira” com a “tromba” avançada, como a do João Torres, a que o Ti Zé M’guel, o chofer (ou xófer, como é uso na terra do Ângelo Mateus), nosso conterrâneo, dava de beber na paragem da Comenda.Eu estava um pouco apreensivo por ir para tão longe do mundo das brincadeiras e dos bailes que fazíamos na Comenda…
Ia deixar de bailar aquelas modas românticas com que embalávamos as cachopas nos braços, enquanto elas cantavam “O meu amor é padeiro, ó ai, traz a cara enfarinhada, ai, traz a cara enfarinhada; os beijos sabem a pão, ó ai, os beijos sabem a pão, ai, não quero comer mais nada…”. Antes da partida fui ver o Ti Zé M’guel pôr água no radiador do motor da “carreira”, tarefa que alguns anos antes despertara a minha curiosidade e que me tinha levado, na altura, a desfazer todas as dúvidas sobre o assunto, meio envergonhado, uma vez que me julgava um “barra” naquela terra de poucas letras onde escrevia as cartas das vizinhas aos maridos que andavam a trabalhar “por fora”.As vizinhas ficavam de boca aberta ao verem que ainda não tinham aberto a boca e já a carta estava toda escrita com os habituais “ Meu estimado marido (ou querido, conforme o grau de intimidade que eu próprio avaliava). Em primeiro lugar, desejo que te encontres de perfeita saúde que eu e os cachopos estamos bem, graças a Deus…” E por aí fora…contando as novidades da terra que eu sabia de cor e salteado.
- Este cachopo é tão esperto! diziam elas, nem é preciso a gente dizer nada, que ele escreve a carta sozinho…
Foi mais ou menos deste jeito que o Ti Zé M’guel tinha desafiado a minha esperteza, naquele dia da interpelação mecânica e que agora, de partida para Gavião, voltámos a recordar:
- Ó Ti Zé para que é a água?
- Ora, J(o)aquim, onde é que tu deixaste a esperteza? É para a camioneta não rebentar, para que é que havia de ser? Precisa de água para arrefecer, senão rebenta.
- Mas ó Ti Zé, isso não é água a mais? Estou a ver que ela vai rebentar mas é com tanta água!!! O Ti Zé pensa que a camioneta é algum camelo, ou quê?
Rimos com a lembrança da conversa que me ajudou a desanuviar o espírito e lá fui, então, para Gavião, a caminho do altar, predilecto de Deus, como viria a aprender depois, na tradução livre e cantada do erudito introibo ad altare Dei…
No velho casarão, tudo me parecia frio a não ser a algazarra do pessoal do segundo ano que, pouco a pouco, me foi entusiasmando com o jogo da “barra (a) bandeira”.Mas os maiores tormentos ainda estavam para chegar. Os “mortos” da barra (a) bandeira e outros de pé pesado para a corrida, do segundo ano, andavam à minha volta e dos meus companheiros de infortúnio, como aves de rapina, praxando-nos com o célebre “Ó caloiro, quelle heure est-il?”Claro, a resposta não se fazia esperar com um imediato caloiro és tu, mas isso só servia para arrancar dos veteranos o riso, estridente e o sarcástico de Ah! Ah! Ah! caloiro és tu!!!...este caloiro não sabe francês!…”
Especialista no riso a bandeiras despregadas era o Joaquim Farinha Alves, de Proença, que volta e meia lá vinha com a pergunta da praxe, cheio de gozo, até que levou para contar numa altura em que me apanhei liberto de testemunhas e me empertiguei nos meus onze anos, mas já com cabedal de doze ou treze.Nunca mais me esqueci da cena: já chateado, até à raiz dos cabelos, com tanto “Ó caloiro, quelle heure est-il?”, desferi-lhe uma saraivada de “português suave”, do género “vai mas é à m… mais o caloiro, seu isto, seu aquilo, seu aqueloutro…O “português suave” da Comenda não era nada inferior ao do Porto e eu estava preparado para uma segunda dose bem ao jeito da primeira, se ele reincidisse, mas o veterano achou por bem bater em retirada e escudar-se no P.e Cardoso, que eu, aliás, mal conhecia, com um simples “ O que tu precisavas era que o senhor Pe Cardoso te fizesse dobrar a língua…ó caloiro”
Não liguei importância à ameaça, ou ao que ela significava e fiquei aliviado por me ver livre, de forma tão eficiente, daquele praxista gozão.Só mais tarde, depois de identificado com os usos e costumes da época, vim a saber que espécie de ameaça constituía o Pe Cardoso com a sua varinha mágica. Juntos, faziam maravilhas! Nas aulas de português e francês, tinham o condão de fazer soltar as respostas que deveriam estar na ponta da língua, e não estavam. No recreio, a sua aparição era suficiente para fazer saltar dos bolsos as mãos que tão sorrateiramente ali se aconchegavam, fugindo dos rigores do Inverno.Mas o Pe Cardoso não acreditava muito nessa fuga aos rigores. Era mais para o desconfiado, experiente, como não podia deixar de ser, em matéria de educação juvenil. Por isso, não queria ver ninguém de mãos nos bolsos, não fosse dar-se o caso de haver algum bolso roto e aparecer por ali, como por encanto (!) mais um dedo, para além dos cinco que era suposto lá estarem, suplicando aos outros um pouco de estímulo para se tornar grande…grande aos nossos olhos, claro, não aos olhos de Deus.
Lembro-me sempre de um dedo assim, quando, segundo dizem, a contragosto, me vêm meter a mão ao bolso…para mais uma taxa ou um imposto.Quem não se lembra?
NR-Joaquim, como vês, aqui, um menino bem comportado e ...com os dedinhos, todos, ao léu!!!
Joaquim Mendeiros
Post-Scriptum: Gavião voltará a estar no meu caminho, no dia 14 de Maio, num reencontro sem varinha mágica, mas, certamente, com magia!!!
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NR- Uma delícia Joaquim! Acho que o Virgílio Ferreira e a sua "Manhã Submersa" já foi!!!! Queremos muito mais!!!
A redacção pede, aqui, ao nosso exímio ilustrador João Lucas, entre mil e uma outras coisas de que é capaz, que aceite o nosso desafio e :"Ilustra-nos este fabuloso texto, rapaz!". Com a célebre barra-bandeira dentro, por favor!Constituirá um belíssimo texto para o opusculo que tentamos preparar para Gavião!!!
antónio colaço