Caro Amigo Colaço,
“A influência da malinha de cartão na dieta mediterrânea»
Quando o Fernando Ramos lançou o mote do Encontro, confesso que mais me pareceu um título de uma qualquer palestra, agora tanto à moda, de quem tem receita para todos os males da gula ou do apetite desenfreado. Numa tentativa para decifrar mote tão enigmático, bem tentei desinquietar o Fernando para que a todos esclarecesse tal mistério. Mas o rapaz fez ouvidos de mercador e deixou-nos a todos nós com a árdua tarefa de, cada um a seu jeito, descobrir o que se esconderia para além das palavras. E aconteceu, por artes mágicas ou por milagre, que as palavras soltaram em mim memórias longínquas de viagens, de odores e de paladares diluídos no tempo e nas encruzilhadas da vida. Assim, ainda menino – imagino que amedrontado - me revi de viagem até ao Gavião e, num qualquer momento de convívio improvisado, saborear as iguarias que cada mala escondia e que nos prendiam aos mimos do lar então distante. Esta era porventura uma dupla transgressão: por um lado, a subversão das regras e, por outro lado, a teimosia em mantermos essa ligação à Terra que era, no fundo, a afirmação da nossa liberdade e identidade. Revisitadas as memórias, lá parti para Alferrarede tendo como companhia os agora redescobertos pela persistência do Manuel Domingues, José Mateus e Fernando Dias. Na viagem até Alferrarede outras memórias se libertaram, algumas comuns e outras muito pessoais, mas todas elas fazendo parte de um coletivo que foi, e continua a ser, bem nosso.
Chegados a Alferrarede qual não foi o espanto quando vimos o Saúl carregando uma mala de cartão, daquelas em tom castanho, daquelas onde outrora se carregavam misérias e se transportavam sonhos. Não me perguntem as razões, mas não consigo imaginar esse singular objeto de uma outra cor que não seja o castanho! Voltando à mala do Saúl, que diabo carregaria ele? Ao abri-la, o mistério desfez-se e o espanto de todos nós foi ainda maior que o próprio conteúdo. Ali estavam as memórias de todos nós, bem arrumadinhas, estimadas, acarinhadas, mas que, por milagre ou artes mágicas, de repente ganhavam vida e deixavam de ser apenas memórias para se tornarem presente. Era a magia do reencontro a partir das memórias do Saúl, também pertença nossa, que libertaram histórias tecidas de recordações, mas com pinceladas de presente. Nessa embriaguez causada pelo reencontro com outros e as suas memórias, descobrimos afinal um pouco do que somos e, irremediavelmente, do que continuaremos a ser, mesmo que disso não tenhamos consciência. Da mala do Saúl saíram fotos devidamente emolduradas, livros, catecismos, o velhinho livro de solfejo, álbum de finalistas e, imaginem, até um caderninho de retiro. E ali, no meio daquele convívio irmanado, eu descobri, o que estava por detrás do desafio do Fernando Ramos. A mala que em miúdo servira para transportar alguns haveres, mas também odores e paladares da Terra, como chouriço, paio, bolinhos, guloseimas e até aguardente de medronho, era agora o repositório de memórias. Confesso que nunca havia pensado no quanto terá sido importante e simbólico uma simples mala na nossa vida de viajantes. Pergunto-me o que, ao longo desta viagem, eu fui retirando da mala para que nela coubessem outras coisas que na vida fui encontrando e, em cada momento, me pareceram mais importantes. A mala que nos acompanha diz por certo muito das opções que tomamos ou daquelas que abandonámos e o que nela guardamos, aquilo que pensamos ser importante que nos acompanhe na viagem, é porventura algo tecido de memórias onde os outros têm lugar de destaque. Só assim se assim se entende que teimemos em nos encontrar, apesar das distâncias físicas ou outras menos visíveis e, quem sabe, indizíveis. Um grande bem-haja ao Fernando pelo que o desafio lançado nos permitiu e ao Saúl por nos mostrar o quanto nos sabe bem abrir a nossa mala e partilharmos com os outros as memórias guardadas sem receios do olhar do outro.
Este nosso segundo encontro, decorridos que foram dois anos desde o primeiro, se dúvidas ainda houvesse foi a confirmação de que outros se seguirão. Por razões diversas, alguns daqueles que estiveram no primeiro encontro viram-se agora impossibilitados de marcar presença, mas outros (Capinha, Mateus Ramos, Fernando Dias, Artur Gonçalves, José Gonçalves, Farinha Alves) responderam ao apelo e marcaram presença. Outros ainda, como o Francisco Vaz, ficaram felizes pelo contacto e se ainda não foi desta que tivemos a oportunidade de os reencontrar, sê-lo-á num próximo encontro. Para que conste dos Autos, aqui se registam os nomes dos convivas: Artur Gonçalves, Adérito Mateus, Abílio Lourenço, José C. Gonçalves, António Oliveira, António Rei Neto, Carlos Lopes, Eugénio L. da Cruz, Fernando Dias, Fernando Ramos, João Carlos Dias Henriques, João Conceição, João Chambel, Jorge Nogueira, José Farinha Alves, José Capinha, José H. Mateus Dias, José L. M. Catarino, José Centeio, José M. Ramos, Luís P. Dias, M. Domingues, Mário Pissarra e Saúl Valente. Como alguns se fizeram acompanhar pelas respetivas companheiras, o fausto banquete foi servido a uma trintena de convivas. No final, o nosso amigo Chambel, além de presentear as senhoras presentes com um dos seus chás de Terras de Guidintesta, regalou-nos com uma prova das suas deliciosas infusões.
Esta prosa que agora aqui partilho, devo-a em parte ao Chico Vaz, porque foi ele o primeiro, sem o saber, a desafiar-me para a aventura da escrita. Importa dizer que o Chico Vaz, a quem nós com carinho apelidávamos de Bobo, era o poeta divertido, que a partir do nada fazia poesia e que a todos divertia. Imaginem que chegada a altura de ter que escrever sobre alguém (não me recordo sobre quem) para o Álbum de Finalistas e recorri, convicto de um SIM, ao Chico para que me «safasse», ele me atirou à cara um assertivo «NÃO». Mas o Chico, na sua enorme bonomia, acrescentou qualquer coisa do tipo: Escreve que eu depois dou um jeito. E assim foi. Guardei para sempre este pequeno episódio e com ele aprendi que, por vezes, um difícil «NÃO» pode despertar em nós dons ainda não revelados. Sem ter certezas, quero acreditar que a amizade, mesmo se construída de silêncios e distâncias, será também feita destes pequenos gestos que perduram para todo o sempre dentro de nós.
Uma última, mas não menos importante e reconhecida, palavra para o nosso amigo Manuel Domingues, pela sua persistência e quase arte de detetive em ir descobrindo os nossos antigos companheiros. Bem-haja, Manuel.
Aqui fica um pouco da forma como vivi e senti este segundo encontro em Alferrarede. Será certamente um olhar muito pessoal, mas um dia quando se tornar memória – nunca nostalgia, porque o tempo não se repete – quem sabe se não será um olhar de todos nós.
Sejam Felizes em Seara de Gente.
Um grande abraço do amigo
José Centeio
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